A Caçadora de Incultos



– Quase matei o encanador! – a mulher já foi falando, atropelando a nossa conversa, sem pedir licença. E prosseguiu:
– Além de ter feito um serviço porco na minha pia, ainda tive que ouvir que “foi difícil pra mim fazer esse conserto, dona”. Ai, ai, ai meus ouvidos! Essa gente que fala pra mim fazer me dá vontade de apertar o pescoço!

O amigo Marcelo me olhou e já ia abrindo a boca. Possivelmente ele diria pra moça que de assuntos de português eu sou conhecedor ou coisa que o valha, mas graças a Deus interrompeu sua pretensão a tempo, acho que por causa do meu olhar que dizia “Não me chame nessa briga, por favor!”.

Não me chamou. Ainda bem.

Tudo o que eu não queria, definitivamente, era ter que discutir com aquele ser humano mal-educado e cheio de si assuntos referentes à língua. Se eu fosse discutir algo com ela, começaria discutindo sua visão de mundo preconceituosa, revelada em frases como “essa gente”.

A mulher foi embora e acabou-se assim a história. Mas não dentro da minha cabeça...

Gosto do trabalho do linguista Marcos Bagno, doutor em Língua Portuguesa e professor universitário, autor de uns 30 livros. Para quem gosta de Português, recomendo a leitura de Preconceito Linguístico. Nesse livro, Bagno demonstra, fazendo uma interessante recuperação histórica, que a língua tem cada vez mais se tornado um meio cruel de discriminação dos letrados sobre os iletrados; os estratos sociais letrados usam do idioma para oprimir, humilhar e dominar os que não tiveram acesso ao estudo. Exatamente o que fez a moça com o pobre do encanador.

Mas voltemos ao caso propriamente dito.

Os sensíveis ouvidos da moça estavam sensíveis demais. Tão sensíveis, mas tão sensíveis, que ela, uma sumidade linguística no seu próprio entendimento, juíza do bem e do mal, quase condenou o encanador à fogueira das letras.

Veja você que grande ironia: ela se enganou. Redondamente. O encanador tinha razão, sua frase estava perfeita.

Vamos avaliar o caso?

A discussão aqui é sintática. E a sintaxe é a parte mais complexa da Língua Portuguesa. Para dominar a sintaxe do Português (a ponto de querer decretar a ignorância do próximo) há de se dedicar a um estudo longo e meticuloso, por anos a fio.

O pronome oblíquo “mim” exerce no Português a função de objeto das orações, e o pronome reto “eu” a função de sujeito.

Na frase “Foi difícil pra mim fazer esse conserto”, o "mim" não é o sujeito. E como eu sei disso? Fazendo a pergunta: “O que é que foi difícil?”. Resposta: “Fazer esse conserto”. Pronto, aí está o sujeito: “fazer esse conserto”. O “mim” não é o sujeito, mas o objeto da ação. A frase está, portanto, absolutamente correta.

Vejamos outra frase, supostamente igual (só supostamente):

“Para eu fazer a lição preciso de luz”

Opa, mas aqui se usa o "eu"? Sim, aqui se usa o “eu” em vez do "mim". Explico. Porque aqui o “eu” exerce a função de sujeito do verbo fazer. A pergunta aqui é diferente, veja: “Quem é que precisa de luz?” (ou tão somente “quem?”). Resposta: “Eu”, e não “mim”, como na frase anterior.

Nas orações em que temos o "para + pronome pessoal + verbo fazer" (ou qualquer outro verbo no infinitivo), na maioria das vezes o correto é mesmo o uso do pronome reto (para eu fazer; para eu ir; para eu comer). Contudo, como estamos vendo, há exceções; para descobri-las há de se avaliar com muita atenção a estrutura sintática da frase, só assim é possível descobrir qual o pronome adequado – oblíquo ou reto, pois só assim saberemos qual exerce função de sujeito e qual exerce função de objeto.

É aí que está o ponto! Não se trata de saber se o certo é usar o mim ou o eu, pensando nos vocábulos de maneira independente. É a análise sintática (da função deles na oração) que nos vai revelar a função que têm dentro de uma oração ou frase. Não se avalia a sintaxe de palavras soltas, e aí que caiu do cavalo a nossa especialista. Sozinha uma palavra é avaliada em classes (substantivos, adjetivos, pronomes, verbos, advérbios, etc.)

A frase do encanador estava correta, porém na ordem inversa, perfeita para pegar de calças (ou saias) curtas os especialistas da superfície, como diria o professor Cláudio Moreno. 

A ordem inversa se caracteriza por sujeito posposto, que é o sujeito adiante do predicado, à direta da fraseem vez de no começo, à esquerda, como é o mais usual.

Para finalizar, visualizemos de forma simples a questão:

Frase original: 


“Foi difícil pra mim fazer esse conserto".

Colocando-a na ordem normal (ordem direta), ficaria assim:

“Fazer esse conserto foi difícil pra mim”.


Ou será que ainda assim a nossa implacável especialista na língua teria coragem de recomendar o uso do “eu”? 


“Fazer esse conserto foi difícil pra eu”. 

Acho que não...


Cesar Cruz



Em tempo: Quem se interessar pelo trabalho do linguista Marcos Bagno e as questões relativas ao preconceito linguístico, sugiro começar por este artigo.

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